Musée d'Art Moderne de la Ville de Paris

AAV Franscico Tropa Portugais

 

Francisco Tropa

O Pulmão e o Coração

15 de outubro de 2022 – 29 de janeiro de 2023

 

 

 

Francisco Tropa (1968, Lisboa), artista maior da cena portuguesa, foi convidado a apresentar uma exposição no Musée d'Art Moderne de Paris no âmbito da Temporada Portugal-França, organizada pelo Institut Français.

A sua prática orienta-se essencialmente para a escultura, a qual é frequentemente associada à imagem fotográfica ou fílmica, entrelaçando referências à Antiguidade, à ciência e tecnologia, ou ainda à história da arte. Produz-se, assim, uma obra multifacetada que assume a forma de uma investigação destinada a perscrutar o acto da criação. A exposição O Pulmão e o Coração inscreve-se nesta linha, procurando dar forma aos princípios da criação que definem a vida, as engrenagens do mundo e dos seres.

 

Uma certa estranheza emerge do trabalho de Francisco Tropa na sua busca constante do ponto de equilíbrio entre um pensamento conceptual e o saber-fazer tradicional.

Iniciada com O Sonho de Cipião e uma visão antiga do cosmos, a exposição conclui com um sonho: o do narrador de Gradiva (1903), célebre romance de Wilhelm Jensen cuja acção se desenrola na cidade de Pompeia pouco antes da trágica erupção do Vesúvio.

O cenário está preparado: uma paisagem metafísica e onírica que nos convida a atravessar mundos e a aferir as suas forças.

A penumbra crepuscular e o ritmo dos mecanismos que se correspondem convidam a uma experiência sensorial. Situada no centro do percurso, a instalação O Pulmão e o Coração desenvolve-se assentando num princípio de repetição e oferecendo uma reflexão sobre a extraordinária funcionalidade do corpo humano. Instalada no piso das colecções permanentes, a exposição entra em diálogo com os grandes mestres da modernidade que fizeram do fascínio pela máquina um dos princípios fundadores da sua prática. Em ressonância, O Pulmão e o Coração estrutura-se em torno do movimento e das temporalidades que são igualmente reflexões recorrentes no trabalho do artista, colocando em perspectiva a noção de ciclos, a mecânica dos corpos terrestres e celestes, e a ideia do todo.

 

 

O Sonho de Cipião, (Lua, Sol, Terra), 2015, aço, tinta de óleo, motor; Colecção do artista, Lisboa

 

O Sonho de Cipião retoma o título do livro VI de De Re Publica de Cícero (54 a.C.), no qual Cipião Emiliano narra o seu encontro com os seus antepassados, entre os quais o famoso Cipião Africano, general romano que se distinguiu nas Guerras Púnicas (264-146 a.C.). Estes dão-lhe a possibilidade de contemplar os segredos do universo e a imortalidade celestial da alma. Na narrativa homérica, a terra dos sonhos encontra-se localizada antes do Submundo. Os sonhos tinham como função trazer o além para o mundo dos vivos ou enviar os vivos para o reino dos mortos. Esta narrativa alegórica de Cícero também tem valor político, contribuindo para um diálogo sobre os modos de governação. Composta por monumentais móbiles geométricos, monocromáticos e animados por mecanismos, a instalação traduz a organização cósmica do Sol, da Lua e da Terra tal como era entendida no mundo antigo. Durante os séculos vi e v a.C., os gregos demonstraram que a Terra é redonda, mas pensavam que esta se encontrava imóvel no centro de um mundo fechado e ordenado. Francisco Tropa joga com a percepção de volumes suspensos e em movimento que se transformam através dos efeitos cinéticos das sombras lançadas sobre superfícies planas, mostrando as facetas de uma realidade múltipla.

O Sonho de Cipião inscreve-se num projecto mais vasto intitulado TSAE (Tesouros Submersos do Antigo Egipto), desenvolvido entre 2008 e 2015.

 

 

 

Panta Rhei, 2018, torneira de latão, água, bomba eléctrica, balde de plástico; Colecção do artista, Lisboa

 

Panta Rhei: Esta expressão faz referência a uma fórmula atribuída a Heráclito de Éfeso, um dos primeiros filósofos pré-socráticos gregos cujo pensamento se construiu em torno da ideia de conflito como movimento que está na origem de tudo. O contexto em que viveu este pensador, em finais do século vi a.C., foi um momento-chave na história da Antiguidade, quando as cidades gregas da Ásia Menor caíram nas mãos dos Persas. Panta Rhei traduz-se literalmente como «tudo flui» ou, de acordo com outra tradução, «tudo se move segundo o seu próprio ritmo». Francisco Tropa retoma a expressão para sintetizar a ideia de um mundo em movimento perpétuo. A metáfora da água para evocar o tempo deve aqui ser entendida, não como fluxo linear, mas sim como movimento circular, uma repetição constante. O conceito cíclico da antiguidade remete para uma outra visão a que muitas vezes se opõe a perspectiva linear do tempo veiculada pelo cristianismo.

Panta Rhei inscreve-se no último grande projecto do artista, intitulado O Bigode Escondido na Barba, 2017-2019.

 

 

 

Ágata, 2022

Colecção do artista, Lisboa.

 

Ágata é la última obra de uma série de lanternas que, neste momento, perfazem uma dezena.

O termo genérico e poético «lanterna» designa uma obra fundadora encetada no início dos anos 2000 e que se apoia no princípio do teatro de sombras. Estas instalações, de tónica cinematográfica, projectam e encadeiam imagens a partir de objectos. Da alegoria da caverna de Platão (A República [VII, 514a-517d]) às primeiras experiências com imagens em movimento do proto-cinema, o teatro de sombras remete para procedimentos antigos e universais. Em Platão, as sombras simbolizam uma concepção ilusória da realidade. Indissociáveis da luz, dão também a ver uma parte do invisível e estimulam o imaginário de modo a induzir uma visão plural e complexa dos objectos.

 

Uma lâmina de ágata disposta num projector de diapositivos revela uma topografia da matéria. À dimensão organica é acrescentada a escala do tempo mineral. A projecção produz um desdobramento de efeitos ópticos onde se sobrepõem representações de espaços subterraneos et cósmicos.

 

 

O Coração e os Pulmões, 2018, tábuas de madeira, vidro acrı́lico, cartazes impressos, candeeiros eléctricos, bronze pintado, elementos em cerâmica, latão, ferro pintado, elementos electrónicos, motores eléctricos, madeira.

Cortesia da galeria Jocelyn Wolff, Romainville, da galeria Gregor Podnar, Viena, e galeria Quadrado Azul, Porto

 

Um livro de medicina descartado e recuperado pelo artista inspirou o tı́tulo desta obra. Trata-se do ponto de partida para uma relexã o sobre os mecanismos que regem o corpo que se apoia, em particular, em dois órgãos motores. Uma vasta instalaçã o modular, O Coração e os pulmões caracterizase pela repetiçã o de elementos arquetı́picos: candeeiros* antropomóricos, capacetes-rostos inspirados no capacete colonial, engodos de caça* grossa em trompe l'oeil, paliçadas* que jogam com efeitos de transparência e opacidade. Estes fragmentos constituem uma matriz na qual se entrelaçam referências ligadas à representação do corpo. 

Servindo-se igualmente da representação teatral, cada elemento desempenha um papel: as paliçadas delimitam a cena, e os capacetes-rostos, denominados em francê s «sentinelas» ou «polıcias»*, controlam ou vigiam. As figuras-protótipos interagem de acordo com modelos que regem tanto a actividade orgânica como a organização social. A instalação desenha um corpopaisagem, atravessado por uma atmosfera crepuscular dominada pelo som dos candeeiros de rua e pelo movimento dos capacetes.

 

* Candeeiro, engodo de caça, paliçada, sentinela ou polı́cia e formam o repertório lexical da instalação O Coração e os Pulmões, da qual sã o parte integrante.

 

 

Gradiva, Raymonde Carasco-Hébraud, 1978, 16 mm, vídeo digital, duração: 25 minutos, Intérpretes: Anne e Emmanuelle, Produção/Divulgação: Raymonde Carasco-Hébraud, INA – Institut national de l’audiovisuel.

Cortesia da Cinémathèque de Toulouse, Régis Hébraud.

 

Esta obra cinematográfica de Raymonde Carasco (1939-2009), figura do cinema experimental, faz parte do conjunto de referências preferidas de Francisco Tropa. O filme inspira-se em Gradiva, um romance de Wilhelm Jensen publicado em 1903, do qual Freud se apoderou e que viria a ter um forte impacto entre os surrealistas.

A obra descreve o fascínio de um arqueólogo pelo modo de andar de uma jovem retratada num baixo-relevo antigo, a quem dá o nome de Gradiva, «a que avança». Uma noite, num sonho, ele vê-a caminhar por Pompeia durante a erupção do Vesúvio e tenta, em vão, alertá-la. Figura intermédia, entre sonho e realidade, Gradiva oferece uma reflexão sobre a permeabilidade dos mundos. A história também interroga a psique, parte imaterial do ser, a mimesis e o poder da obra.

Da narrativa de Jensen, o filme recupera o tema do movimento, indissociável da questão da temporalidade. A realizadora filma, em ciclo fechado e numa repetição perturbada e animada por infinitas variações, um pé feminino que pousa sobre as grandes lajes de pedra que revestem as ruas da cidade romana. Em diálogo com O Firmamento, a obra Gradiva traduz a intercalação de cadências, bem como o fascínio de Francisco Tropa pela antiga cidade de Pompeia, que inspirou os seus trabalhos anteriores.

 

*Mimesis: Termo grego que se traduz como «imitação».

 

 

O Firmamento, 2017, vidro soprado, mecanismo com roda de engrenagem de cobre, latão, corda de linho, madeira, pedestal, 

Cortesia da galeria Jocelyn Wolff, Romainville

 

A obra é uma alegoria dos grandes mitos que têm vindo a construir o mundo desde as primeiras especulações da antiguidade até às descobertas de Copérnico e Galileu nos séculos xvi e xvii. Ao intitular esta escultura O Firmamento, o artista enfatiza as primeiras representações do sistema planetário. O termo deriva da palavra latina firmamentum, que significa «apoio, suporte». Produzido no Cirva (centro internacional de investigação do vidro e das artes visuais) em colaboração com os seus mestres vidreiros, a delicada semiesfera azul transparente de vidro soprado evoca a abóbada celeste. A forma da cúpula que cobre a Terra sintetiza simultaneamente os conceitos científicos e sagrados que se difundiram em numerosas civilizações, incluindo as culturas greco-romana e do Próximo Oriente.

O erudito grego Cláudio Ptolomeu (c. 100- 170) fazia referência à oitava esfera que delimita o Universo e à qual se encontram presas as estrelas. O Génesis (I, 6-8) proporciona uma descrição da sua criação: «Deus disse: Haja um firmamento no meio das águas e que ele separe as águas das águas.» Um mecanismo anima a escultura. O dispositivo encontra-se visível, mas o movimento é imperceptível. O que escapa ao nosso olhar esquiva-se também ao nosso pensamento.

A viagem termina com a concordância de ritmos: os da rotação da abóbada e do andar de Gradiva.